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Preconceito ou valorização?

A entrada de alunos menos favorecidos na Universidade tem virado notícia em diversas plataformas (Foto: Divulgação).
O ingresso de alunos menos favorecidos na Universidade tem virado notícia em diversas plataformas e dividido a opinião do público (Foto: Divulgação).

A divulgação de aprovados em universidades do Brasil inteiro, em função do resultado do Sistema de Seleção Unificada do Ministério da Educação (Sisu/MEC), no início deste primeiro semestre letivo, provocou uma onda de noticiários que enfatizaram especialmente a conquista de alguns estudantes ao adentrar no Ensino Superior. Jornais, revistas e sites de todo o país fizeram manchetes com a filha da doméstica que deu um novo rumo à história da família pobre, a travesti que conseguiu sua vaga na Universidade e o catador de lixo que, finalmente, pode começar seu plano de ser “alguém na vida”. A posição dos veículos de comunicação dividiu opiniões.

Enquanto parte do público apoiou a iniciativa e considerou essa uma forma justa de valorizar o feito de pessoas que se esforçaram tanto a ponto de romper com uma condição, a princípio, de desvantagem, outra parcela entendeu que noticiar tais acontecimentos reforça, ainda mais, o preconceito.

O publicitário Diego Lucas Barbosa, 26, faz parte do primeiro grupo. Para ele, esse tipo de notícia não agrega informações suficientes para formar uma opinião concreta em quem ainda não tem posicionamento formado sobre o assunto. “[A matéria] pode reforçar os pensamentos que os leitores já possuem. Se são contra, pode aumentar o preconceito. Se são a favor, fará ter orgulho da situação”, pontuou. “Aos indecisos, creio que elas deem um ‘empurrão’ para que se construa sua posição pessoal”. Já a auxiliar de Educação Infantil e acadêmica de Pedagogia Eloísa Santos, 43, disse enxergar nisso tudo um “preconceito camuflado”. “O QI [quociente de inteligência] de uma pessoa não está relacionado a cor, classe social ou sexo”, disse.

Começo de vitória

Transexual passou em universidade pública e virou notícia (Foto: Facebook).
Transexual passou em universidade pública e virou notícia (Foto: Facebook).

Amanda Palha é transexual e tem 28 anos. No início de 2016, ela foi notícia em vários canais por ter sido aprovada em primeiro lugar pelo Sisu no curso de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, para ela, sua conquista e outras semelhantes só podem ser consideradas um grande passo rumo a uma sociedade melhor a partir do que se faz com isso. “A mera inclusão de pessoas trans na faculdade não significa muita coisa se existir isoladamente”, comentou, em entrevista. “O que faz diferença é o que a gente faz dentro espaço. Por isso que eu não acho que é uma vitória ainda, é um começo”.

Após a divulgação da matéria no site da revista Exame, diversos internautas manifestaram sua opinião. “Não importa se ela é hetero, trans, travesti ou gay. Importa que ela está mostrando que as travestis também estudam e não são todas prostitutas, como a maior parte da sociedade generaliza”, disse um. Outro, menos favorável à publicação, discursou: “Segundo a Constituição, somos todos iguais, independente de gênero. Um hetero é mais intelectual que um homossexual, por isso precisa de holofotes quando passa em alguma coisa? Claro que não. O preconceito começa a partir do momento em que separam a população entre nós e eles”.

Como funciona o Sisu?
O processo seletivo do Sisu, que existe desde 2009, é uma forma que universidades públicas do Brasil têm utilizado para selecionar novos alunos, em detrimento do antigo vestibular. Para isso, o candidato efetua sua inscrição e o sistema seleciona automaticamente os candidatos mais bem classificados em cada curso, de acordo com suas notas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A partir daí, são considerados selecionados os candidatos classificados dentro do número de vagas ofertadas pelo Sisu em cada curso, por modalidade de concorrência.  Há instituições participantes do Sisu que disponibilizam uma parte de suas vagas para as políticas afirmativas que beneficiam afrodescendentes, indígenas e alunos vindos de escola pública, por exemplo.

Taís Brem

No topo das preferências

Curso de Medicina permanece como mais disputado nos vestibulares

(Foto: Wilson Lima)
Índice de vestibulandos que escolhe a graduação é sempre alto (Foto: Wilson Lima)

Todo santo ano é a mesma coisa: é só verificar as listas dos cursos escolhidos pelos vestibulandos para testificar a imensa quantidade de pessoas que opta por cursar Medicina. Há quem, inclusive, faça um verdadeiro tour pelo Brasil, prestando provas do Oiapoque ao Chuí, na esperança de conseguir vaga em alguma instituição de Ensino Superior e, assim, realizar o sonho de exercer uma das profissões mais cobiçadas do mercado. Qual a motivação de tanto esforço? Pressão familiar? Busca por status? Retorno financeiro? Ou, puramente, vontade de ajudar as pessoas?

Maira concluiu a graduação em 1991 (Foto: Arquivo Pessoal)
Maira concluiu a graduação em 1991 (Foto: Arquivo Pessoal)

A diretora do Hospital Miguel Piltcher (HMP), Maira Piltcher, 47, é otimista. Para ela, que formou-se em 1991 pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), a maioria das pessoas que busca a área médica como profissão o faz por vocação. “Infelizmente, temos aqueles que realmente procuram a Medicina pela questão financeira ou por imposição da família. O que é algo problemático, pois posso garantir que ninguém é feliz ou faz bem aquilo que não faz por amor. No caso da Medicina, isso não só acarreta problemas pessoais como pode atingir o paciente”, disse.

A vontade de poder ajudar o próximo, entender e aliviar seus problemas, unida à necessidade de levar adiante o negócio da família também acabou por guiar Maira ao caminho que segue até hoje. O lado positivo é que sua escolha não foi abafada por uma visão fantasiosa da profissão. Ter crescido no ambiente característico, vendo seu pai, o também médico Miguel Piltcher, trabalhar muito e viver a intensa correria de plantões e urgências, a preparou naturalmente para a movimentação cotidiana que viria a enfrentar. “Aquilo já me fascinava”, relembrou ela, que acabou escolhendo uma especialidade que não lhe permite muito
descanso: ginecologia e obstetrícia.

Partos são atividade rotineira no dia a dia de Maira (Foto: Arquivo Pessoal)
Partos são atividade rotineira no dia a dia de Maira (Foto: Arquivo Pessoal)
Etiene conclui curso no fim do ano (Foto: Arquivo Pessoal)
Etiene conclui curso no fim do ano (Foto: Arquivo Pessoal)

Curiosamente, foi, também, o lado movimentado da profissão – academicamente falando – que estimulou Etiene Dias, 28, a querer seguir carreira como médica. Ela se forma no próximo mês, pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg), e desde o início do Ensino Médio ficou fascinada pela possibilidade de trabalhar numa área que exige constante atualização. “Isso me atraia muito. Sei que muitas pessoas escolhem a área médica por esperar um bom retorno financeiro e algum status perante a sociedade. No meu caso, não pensei diretamente nisso, pois acredito que, quando se é um bom profissional, dedicado e competente, essas duas questões são uma consequência direta”, opinou.

Mudança de planos
Se Maira e Etiene sempre tiveram uma inclinação clara para a área da Medicina, com Carolina Malhão, 26, as coisas não foram definidas de forma tão simples desde o começo. Embora ingressar no curso mais disputado das faculdades fosse um sonho antigo, a vontade esbarrava no medo do vestibular e na ideia de que não conseguiria passar pela concorrência. Então, Carolina seguiu a profissão do pai: o jornalista Jorge Malhão. Depois de formada e tendo exercitado o talento genético tanto pelas ondas do rádio quanto pelas páginas do jornal, decidiu abandonar tudo e arriscar no seu sonho. “Ainda estou lutando para ter uma vaga na universidade, por isso não tenho muitos planos para depois de formada”, afirmou. Quando questionada sobre a possível razão para que a profissão de Medicina seja tão almejada pelos vestibulandos, Carolina comentou: “Claro que muitos são guiados pela vontade de fazer dinheiro. Mas, acredito que não há nada de errado disso, desde que não se abandone o humanismo tão necessário na profissão”.

Carolina deixou o Jornalismo para investir em seu sonho (Foto: Arquivo Pessoal)
Carolina deixou o Jornalismo para investir em seu sonho (Foto: Arquivo Pessoal)

Números
Raramente os altos índices de procura pelos cursos de Medicina nas instituições de Ensino Superior mostram alguma surpresa. De um modo geral, em várias regiões do país, do interior às capitais, o fenômeno observado é o mesmo: muita gente lutando pelas mesmas vagas. No início desse ano, por exemplo, a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, registrou 451 candidatos inscritos para cada uma das vagas disponibilizadas para a graduação. Para 2014, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o índice é de 104 candidatos por vaga. Na Universidade Federal do Ceará, que tem a
sugestiva sigla “UFC”, a disputa também é acirrada: são 9.748 inscritos para 140 vagas. Já no processo que selecionará os novos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para o próximo ano, há 57 candidatos disputando cada uma das vagas disponíveis para Medicina.

Em Pelotas não é diferente: nas duas universidades que oferecem o curso – UFPel e UCPel, a procura é bastante grande, tanto por estudantes daqui quanto por candidatos de outras partes do Brasil. Na Católica, por exemplo, que disponibiliza 90 vagas ao ano para a graduação, o índice de candidatos por vaga que era 22 em 2010 subiu para 36 em 2012.

Sonho familiar
Quando se fala em vida profissional dos filhos, para a maioria dos pais, o mais importante é que eles exerçam uma carreira que lhes deixe felizes. Mas, o desejo de um emprego que remunere bem também é um anseio. É o que mostra uma pesquisa feita recentemente pela rede social corporativa Linkedin. O levantamento, que colheu a opinião de 1.001 pessoas, mostra, ainda, que 35% dos entrevistados sonham em ver os filhos atuando como médicos ou como empreendedores, dirigindo o próprio negócio.

Taís Brem

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Meus parentes, meus vizinhos

Famílias que decidem morar juntas desenvolvem tradição que se perpetua por décadas

Parte da família Silveira reunida (Foto: Daniel Avellar)
Parte da família Silveira reunida (Foto: Daniel Avellar)


A irmã da funcionária pública Cristina Lameirão, 48, tinha um lote que media 12 por 30 metros no bairro Obelisco, em Pelotas. Sua família, então, resolveu comprar mais um, ao lado, do mesmo tamanho, e vender a metade para o irmão. Ele, por sua vez, vendeu parte do terreno para outra irmã. E a mãe, Erondina, 73, que morava no Areal, vendeu a casa para ficar mais perto dos filhos. O resultado de todas essas transações é que, atualmente, boa parte dos parentes de Cristina mora praticamente junta. São dez pessoas divididas em quatro casas, uma ao lado da outra.

A colaboração cultivada no ambiente familiar é citada como um dos prós dessa habitação coletiva, já que, embora sejam quatro residências, a família vive como se fosse uma só. “O bom é a segurança e a tranquilidade de saber que sempre tem alguém de confiança por perto, com quem se pode contar”, disse Cristina, que cursa o quinto semestre de Geografia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E as situações que pedem ajuda dos parentes são as mais diversas: desde dar uma “olhadinha” para que a roupa que ficou estendida não molhe com uma chuva inesperada até emprestar um pouco de erva-mate quando acabou a matéria-prima para fazer o chimarrão doce que ela tanto gosta. E os contras? “Bom, a parte negativa, é que, às vezes, as crianças se ‘estranham’, mas, fora isso, família é tranqulio”, afirmou.

Uma ninhada de “lingoodles”
A residência dos Lameirão é grande. Tão grande que não tem apenas espaço para os seres humanos: os bichos também se beneficiam do local onde sempre cabe mais um. Entre os animais de estimação da família estão, pelo menos, as oito galhinhas e um garnizé que fazem companhia a dona Erondina, a gata Ágata (que, segundo Cristina, está em idade reprodutiva e “trabalha muito”), a tartaruga Zezinho, nove gatos, duas chinchilas, uma cocota e doze cachorros. A esses, Cristina atribuiu até um nome bem peculiar, a fim de identificar a raça que surgiu do cruzamento entre poodles e dachshunds, popularmente conhecidos como linguicinhas. “Chamo eles de ‘lingoodles’”, disse, orgulhosa. Todos os animais da família são amados, mas os lingoodles são especiais. A criação começou quando a filha de Cristina, ainda criança, sugeriu que a mãe recebesse um cãozinho em casa. E ela, que só tinha gatos até então, aceitou. Dali para diante, não parou mais. Um episódio curioso ocorreu na última virada de ano, quando, assustado por causa dos fogos de artifício, o cachorro Larguinho acabou se perdendo pela vizinhança. “Só fui notar que ele tinha sumido no outro dia, na hora da refeição, quando todos se juntaram para comer”, relembrou Cristina. Foi quando começou uma verdadeira saga pelos arredores, em busca do animalzinho. Quando encontrou, não conteve a emoção. “Os vizinhos devem ter achado que eu estava louca, gritando o nome dele, de tanta alegria”, disse. “Mas, não era loucura! Era uma mãe que tinha reencontrado seu filho”.

Condomínio familiar

Nilza e Maurício demonstram satisfação em ter a família por perto (Foto: Arquivo Pessoal)
Nilza e Maurício demonstram satisfação em ter a família por perto (Foto: Arquivo Pessoal)

Quem avista a casa de Maurício, 89, e Nilza Silveira, 87, pelo lado de fora, não imagina quantas peças tem, verdadeiramente, o terreno localizado no bairro Simões Lopes. Nem quantas pessoas ele abriga. Afinal, mesmo que a residência adquirida nos anos 1980 não seja moradia atual de todos os filhos, netos e demais frutos da árvore genealógica do casal – o que inclui sobrinhos, genros, noras –, ao longo de toda a história da casa na posse da família, já passaram por lá nada mais nada menos que 18 pessoas. Hoje, sobram oito: além de Maurício e Nilza, três filhas do casal, dois netos e um genro.

Entrando pelo corredor principal, é possível avistar as janelas que dão para o quarto do casal, para o quarto da filha mais nova, a assistente de lares, Margaret, e para o cômodo de hóspedes, fora a sala de visitas. Logo acima da cozinha, da sala de jantar, do banheiro e da área de serviço, há as três peças que fazem as vezes de casa para a outra filha, a funcionária pública, Luiza. E, mais ao fundo, o lar da filha mais velha, a costureira Maria Carmen, de seu marido, o pedreiro Itamar, e dos dois filhos, o militar Lucas e a fiscal de caixa, Jaqueline. Os “Silveira Garcia” ocupam, portanto, sete peças divididas em dois andares. O terreno ainda acomoda um pátio, onde fica o cachorro da raça cocker Rafú, e o chamado “quartinho”, local em que a família costuma colocar aquilo que já não serve para estar dentro de casa, mas, também, não está totalmente preparado para ir pro lixo.

Jaqueline (D), com a mãe e o cunhado, na frente de casa (Foto: Arquivo Pessoal)
Jaqueline (D), com a mãe e o cunhado, na frente de casa (Foto: Arquivo Pessoal)

A opinião dos patriarcas da família é semelhante à de dona Erondina: para eles, estar com os filhos, netos e demais parentes por perto é um privilégio. Para eles… “O ponto negativo é que, morando juntas, as pessoas acabam se metendo umas na vida das outras. Mas, o positivo é que, para qualquer imprevisto que aconteça, há um suporte. Família é insubstituível”, comentou Jaqueline, ao acrescentar que pretende, assim que possível, ter a sua casa própria. “Se eu tiver essa opção, prefiro ter a minha independência”.

Pode ser que não seja tão privativo o espaço de Jaqueline na casa de seus avós. Mas, dentre os prós e contras das famílias que moram juntas num só pátio está o fato da responsabilidade social na construção civil. Afinal, em vez de consumir mais matéria-prima e construir diversas casas, muitos brasileiros optam por esticar um pouco aqui, outro pouco acolá e aproveitar cada centímetro quadrado de seus terrenos, reduzindo o impacto ambiental. É quase a mesma lógica da diminuição de carros nas ruas para conter a poluição. É fato que a maioria gostaria de ter seu automóvel próprio. Entretanto, se as pessoas passarem a utilizar outros meios de transporte – como a bicicleta, por exemplo – ou andarem mais de carona, a quantidade de veículos nas ruas cai e o meio ambiente agradece. No caso das residências, se os chamados “puxadinhos” não forem irregulares, de acordo com os padrões ditados pela Engenharia, quem ganha é a sustentabilidade e, por conseguinte, toda a população.

Recentemente, inclusive, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) passou a disponibilizar em seu site a cartilha Construções e Reformas Particulares Sustentáveis, onde podem ser encontradas dicas para que qualquer cidadão possa aplicar em sua obra materiais, serviços e processos construtivos alinhados com a ótica das soluções sustentáveis, também conhecidas como “eficientes” ou “inteligentes”. Ao contrário do que muita gente pensa, essa não é uma realidade distante e pode, muito bem, ser aplicada em moradias populares.

Para qualificar profissionais
Em Salvador, Bahia, considerada a “capital nacional dos puxadinhos”, a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (Sucom) chegou a sugerir que instituições de Ensino Superior que possuem cursos de Engenharia pudessem dar assistência técnica aos cidadãos menos favorecidos, uma vez que a intervenção do engenheiro é fundamental para que o projeto – ou a expansão dele – seja bem-sucedido.

Por aqui, na semana que passou, a Universidade Católica de Pelotas (UCPel) lançou novas graduações, que já estarão disponíveis aos estudantes no próximo Vestibular de Verão. Uma delas atende pelo nome de Engenharia Ambiental. O novo curso terá como foco formar um profissional apto na resolução de problemas pontuais envolvendo obras e na correção de impactos ambientais, com habilidades e competências características de um projetista. O engenheiro ambiental formado pela UCPel também terá a capacidade de dar orientação ecológica na elaboração e execução de projetos de engenharia. Com certeza, as atribuições desse profissional não se resumirão à fiscalização de obras como as citadas nessa reportagem. Mas, certamente, os simpatizantes dos puxadinhos terão um apoio a mais para cultivar a tradição da melhor forma.

Taís Brem

Design de exclusão

Produtos de apelo inusitado e criativo fazem sucesso no mercado, mas esquecem de contemplar o público negro

avental

Em tempos de design criativo, só consome produtos com cara de convencionais quem quer. Para os mais despojados, divertidos e, até mesmo, autênticos, há materiais com ar de exclusividade que dão um toque especial à decoração da casa ou do próprio corpo. Existem lojas físicas especializadas no ramo, mas é na Internet que os adeptos dessa moda fazem mesmo a festa. Nesse contexto, encontra-se de tudo, inclusive artigos com estampas que simulam a transparência do corpo, que estão no topo das novidades. Um fato, no mínimo, curioso, é que, na maioria das vezes, tais materiais são produzidos apenas para quem tem a pele branca. E descobrir se isso ocorre por uma inocente falta de noção da indústria ou por uma demonstração escancarada de preconceito racial é motivo de debate.

A tendência está nas luvas térmicas que ilustram mãos cheias de anéis; nos aventais divertidos, que sugerem que o cozinheiro está com o barrigão à mostra; e nas camisetas sensuais cuja estampa simula um corpo feminino sarado trajando apenas top – ou um corpo masculino, musculoso e tatuado. Até as grávidas podem usufruir das novidades. Um dos modelos para esse público é uma blusa listrada com o desenho de um bebê no centro, como se espiasse através de uma persiana o mundo que, logo, logo será seu novo lar.

Analista de mídias sociais acha que produtos deveriam ser mais abrangentes
“Viver as diferenças é tendência”, disse Trecha (Foto: Wilson Lima)

Entre o público, há quem diga nunca ter percebido que, “coincidentemente”, esse nicho do mercado parece ter esquecido os consumidores negros. “Nunca havia parado para pensar sobre isso, mas, é possível acreditar que a indústria está sendo racista”, opinou o analista de mídias sociais Ranieri Trecha, 22. “Eu acredito que ter o olhar sobre a diversidade é ver a oportunidade de mercado para diferentes segmentos e fazer com que todos se sintam parte do ‘todo’ sempre, e não somente na hora de comprar. Viver as diferenças é tendência. Se eu não fosse branco, logicamente iria querer comprar produtos com a minha cor. O preconceito está em não querer ver a possibilidade que existe em diversificar os produtos, afinal vivemos numa diversidade de estilos, raças e crenças”.

Para a formanda do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) Tamires Mendes, 21, talvez o equívoco da indústria do design não esteja sendo proposital, mas não deixa de ser uma atitude que merece atenção. “Eu acredito que é uma falha enorme eles produzirem vários produtos que têm o desenho de membros do corpo humano somente para brancos. Não quer dizer que pessoas negras não possam usar esses produtos, mas fica estranho usar algo que simula um corpo diferente do seu”, comentou. “Espero que as pessoas mudem a forma de pensar e vejam que nós somos todos iguais e que devemos ser respeitados e tratados com dignidade”.

Com a palavra, os profissionais
De acordo com a designer Ingrid Scherdien, 27, conhecer as particularidades do usuário do artefato que está sendo produzido é fundamental para o sucesso de qualquer ideia. “Projetos de design necessitam de uma clara definição do público-alvo ao qual se destinam. Partindo desse princípio e observando esses produtos que brincam com a ‘transparência’, percebe-se que os negros certamente não são o público-alvo dessas peças. Afirmar o racismo com exatidão é complicado, mas, é possível dizer, com certeza, que esse posicionamento é, no mínimo, excludente”, disse. “O comparativo não é exato, mas seria algo como relacionar a produção de roupas que geralmente são feitas nas medidas corpóreas dos mais magros a um preconceito com os mais gordinhos. Ouso ampliar essa percepção para a grande maioria das indústrias, não só de produtos criativos. Talvez, as empresas não considerem os negros como consumidores em potencial, pensando que não é apropriado colocar algo específico em produção que, ao final, não terá saída. Esse mercado ainda não conseguiu absorver a ideia de que os negros possuem plena capacidade de ascender social e financeiramente e consumir tais produtos, assim como todas as outras pessoas”.

"Discurso não deve ser apenas dos afrodescendentes", disse Tereza.
“Discurso não deve ser apenas dos afrodescendentes”, enfatizou Tereza (Foto: Wilson Lima)

Tereza Duarte, 38, que leciona disciplinas de Design no Campus Pelotas – Visconde da Graça (CaVG) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IF-Sul) e na UCPel, concorda que a comunidade negra não seja cogitada como possível consumidora desses produtos, mas demonstra encarar o tema com mais complexidade. “Enquanto educadora, vejo que ainda temos muito que lutar e avançar nas discussões para que o valor e a cultura do negro sejam mais presentes, em todos os segmentos”, disse, ao sugerir que o assunto não se trata de síndrome de inferioridade ou autocomiseração. “Isso não pode ser apenas um discurso dos afrodescendentes, e acredito que seja este o grande problema: falta, ainda, a sensibilidade e o comprometimento de todos (negros e não-negros) sobre a importância das questões étnico-raciais”, pontuou Tereza, que é formada em Artes Visuais – Habilitação Desenho pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e mestranda em Design pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), em Porto Alegre.

Teoria e prática
Em 2010, a publicitária e sócia da Tr3s Comunicação Total Danielle Gonzales, então diretora de arte da Agência Experimental de Publicidade da UCPel (Agente), participou da concepção da campanha para a divulgação do Vestibular da universidade. A principal peça da ação era um álbum de figurinhas com ilustrações representando os possíveis alunos da instituição. Danielle, que desenhou todos os personagens, procurou contemplar as diferentes raças no projeto, acolhendo a sugestão dos demais colegas. “Procurei fazer um número parelho de ilustrações para cada raça; lembro que tinha uma menina ruiva, tinham negros, loiros, morenos e um japonês, também. Nos morenos, fui variando o tom da cor de cabelo desde preto até castanho claro, e também os tons de pele, para que o maior número de pessoas pudesse se identificar com as figurinhas”, relembrou. “Creio que os dados estatísticos a respeito das populações negra e branca tenham números bem equilibrados. Pensando assim, não teria porque fazer essa distinção e ofertar produtos apenas para os consumidores brancos”.

Um exemplo da distinção a que Danielle se refere é um case para iPhone que estampa uma mão e uma orelha. O propósito do produto é criar a ilusão de ótica de que, ao atender ao telefone, o indivíduo está apenas levando a mão junto ao rosto. Na página da Internet onde é comercializado, o artigo tem seis apresentações diferentes, sem que nenhuma, porém, faça alusão à raça negra. “Pelo menos uma dessas opções poderia representar um negro, porque, aí, não se enquadraria a desculpa de dificuldade de produção. Pode ser que as empresas tomem essa atitude por considerar uma opção mais barata e por achar que a massa de consumidores se enquadra no ‘padrão pele branca’”, sugeriu Danielle.

Também publicitária e gestora de eventos, Adriana Cunha, 22, vê todo esse processo como um reflexo de valores, como o racismo e o machismo, que são passados para a sociedade com o propósito de atingir determinado objetivo de venda. Muitas vezes, de forma tão enraizada que é aceito como normal. “Mas, preciso, também, falar que vejo um movimento contra isso tudo, uma tentativa de mudança”, ressaltou. “Hoje, estamos mais tolerantes que há anos atrás. Acredito que é um processo em que a publicidade pode e deve ajudar. Os questionamentos que surgem com relação a essa questão e as pessoas que já veem além acabam gerando propagandas com o objetivo de questionar, chocar e tentar alertar para uma possível transformação”.

Sentindo na pele
Em 1994, a modelo internacional e mulher do músico David Bowie, Iman

Modelo criou sua própria linha de maquiagens em 1994
Modelo criou sua própria linha de maquiagens em 1994

Abdulmaji, resolveu lançar sua própria linha de maquiagem. O motivo: cansou de ir às sessões de fotos, encontrar apenas maquiagens ideais para pele branca e ser obrigada a praticamente posar mascarada nos trabalhos em que comparecia. Hoje, Iman não trabalha mais como modelo, mas, é executiva-chefe da própria empresa, que, aliás, vende seus produtos para cerca de duas mil lojas mundo afora, além da Internet.

A história de sucesso de Iman pode, muito provavelmente, ter dado certo por ter sido iniciativa de alguém que sentia literalmente na pele a dificuldade de ser ignorada no universo dos cosméticos. Quase vinte anos depois, empresas do ramo já têm linhas específicas para afrodescendentes, inclusive aqui no Brasil. Mas, basta um olhar mais apurado para perceber que a dica para que os demais segmentos da indústria sigam o mesmo exemplo permanece necessária.

Taís Brem