Mundo paralelo


Particularmente, não lembro disso muito bem. Mas, tenho um amigo que, volta e meia, recorda uma cena que povoou boa parte das manhãs das crianças da década de 1980: a mesa de café da manhã da Rainha dos Baixinhos. Tinha de tudo ali, não só o básico café preto, obviamente. Tinha leite, iogurte e suco. Tinha pão, bolacha e bolo. Tinha geléia, margarina, patê e sabe-se-lá-mais-o-quê! E frutas, muitas frutas. De todas as cores, tamanhos e sabores. Uma mesa farta, de encher os olhos, da qual a apresentadora pegava um grão de alguma coisa e, com o poder de quem pode ignorar toda aquela abundância, seguia o programa, deixando toda a audiência com água na boca. Audiência essa – sempre bom lembrar – que, em sua maioria, não devia ter nem um terço do que estava naquela mesa para provar em sua humilde residência. A mesa de café da manhã da Xuxa era outra realidade. Praticamente, um mundo paralelo. Uma coisa vivida por alguém que parecia estar tão perto, ali, do outro lado da tela, mas, na verdade, estava muito afastada do que ocorre no mundo dos reles mortais.

No dia em que recebeu a atriz Maitê Proença no palco do Video Show, semana que passou, Zeca Camargo bem que podia ter colocado uma trilha da Xuxa de fundo. Talvez os mais espirituosos entendessem o link enquanto o rapaz e sua convidada marcavam num grande mapa-múndi os países que já haviam visitado. Maitê, apresentada como uma viajante nata, jurou nunca ter contado os locais em que já foi durante sua vida inteira, mas fazia ideia de serem umas 70 nações. Camargo se exibiu e foi certeiro: visitou 97 e pretende, em breve, fechar 100. Falou com a naturalidade de quem planeja, depois de amanhã, conhecer o novo minimercado que abriu no bairro vizinho. E isso para um público que, se bobear, não sabe nem que Brasil faz fronteira com o Uruguai.

Daí, o indivíduo que está quebrando a cabeça para ver como vai conseguir completar o dinheiro da passagem do ônibus para o próximo dia de trabalho, se depara com uma notícia-bomba direto do mundo dos esportes: dizem que a fortuna envolvida na compra do Neymar pelo Barcelona não foi “só” de cerca de R$ 188,5 milhões, como o divulgado até então, mas de R$ 284,5 milhões. Um valor que dá nó na cabeça só de tentar contabilizar.

É impossível o cidadão comum não se sentir deslocado com contrastes como esses, que – não é de hoje – pipocam na mídia como se fizessem parte da vida de todos. Para a geral, o jeito é assistir ao lado “vida real” da programação como quem acompanha um programa de ficção. No mínimo, vai doer menos. Para a imprensa, cabe a dica de se adequar melhor à realidade do público que deseja atingir. A menos que os inadequados nessa história toda sejam mesmo os pobres-sonhadores-telespectadores que têm posado de intrusos do outro lado da TV.

Taís Brem

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“A cidade respira essa tragédia todos os dias”

Um ano depois do incêndio, Santa Maria vive intensamente dor e revolta

Silhuetas simbolizando vítimas foram pintadas no asfalto (Foto: Portal Terra)
Silhuetas simbolizando vítimas foram pintadas no asfalto (Foto: Portal Terra)

Quem chega à cidade de Santa Maria hoje, dia 27 de janeiro de 2014, não tem como ficar alheio à realidade que assombrou o local há um ano atrás, quando 242 jovens perderam suas vidas no incêndio da Boate Kiss. A tragédia abalou não só o município,  mas o estado, o Brasil e o mundo. Provocado por uma performance pirotécnica da banda que se apresentava na casa noturna na ocasião, o acidente deixou vítimas que ainda hoje se recuperam dos efeitos causados pela fumaça tóxica inalada. Mas, não apenas isso. Além do saldo de mortos e feridos, o acontecimento comove pela sensação de impunidade, já que nenhum dos apontados pela justiça como responsáveis pelo acidente de fato cumpriu alguma pena até agora.

Carol mora na cidade há pouco mais de um ano (Foto: Arquivo Pessoal)
Carol mora na cidade há pouco mais de um ano (Foto: Arquivo Pessoal)

Esse, talvez, seja o principal motivo para que o clima pesado que paira sobre Santa Maria desde aquela fatídica madrugada ainda
esteja tão palpável. “E isso, acredito, vai [durar] no minimo, uns dez anos”, arriscou a jornalista Carolina Graziadei, 28. Quando o incêndio ocorreu, fazia apenas quatro meses que a pelotense havia se mudado para Santa Maria, para trabalhar como comunicadora da Rádio Atlântida de lá. Ela não estava na festa e, dos convidados, conhecia somente o DJ, que se salvou por conhecer bem a saída do local. “Eu estava em Bagé, no casamento de uma grande amiga. Soube às 7h, quando meu pai foi acordado com um telefonema perguntando se eu não estava na boate”, relembrou. “Quando peguei meu celular, tinha várias ligações e mensagens, inclusive do meu chefe. Antes do meio-dia, cheguei e fui direto para a rádio e fizemos plantão até as 2h”.

Carolina não chegou a entrevistar familiares ou amigos das vítimas, pois a cobertura da emissora ficou a cargo da Rádio Gaúcha até a segunda-feira (28). Quando a programação voltou ao “normal”, porém, apenas uma nota oficial foi lida em referência ao sinistro. “Em toda aquela semana e na outra quase não falamos nada no ar. Não havia motivos para sermos alegres. Perdemos 242 ouvintes”, explicou a jornalista. Como profissional, ela já havia trabalhado num caso semelhante quando cobriu o acidente com o
time do Brasil de Pelotas em 2009, na época, pela TV Pampa. “Ali, eu cresci muito, porque conhecia os jogadores e acompanhei tudo de perto”, disse. “Mas, eles foram ‘só’ três perto deste número assustador”.

Regularmente, associações ligadas à memória das vítimas fazem questão de organizar atos que não deixam a tragédia cair no esquecimento. Um deles foi a pintura de 242 silhuetas no asfalto em frente à boate, simbolizando os jovens mortos. Durante um bom tempo, quem passar pelo local, verá os corpos estirados, em lembrança à tragédia. “No calçadão, há uma tenda montada justamente para que a população não se esqueça do acontecido. Todos os dias se fala nisso, se lembra. A cidade respira essa tragédia todos os dias”, comentou Carolina.

Taís Brem

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