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A corrupção nossa de cada dia

Mesmo imperceptíveis, atos corruptos acabam fazendo parte do cotidiano de simples cidadãos

Quando apreendidos, produtos falsificados são destruídos (Foto: Prefeitura de Contagem)
Quando apreendidos, produtos falsificados são destruídos (Foto: Prefeitura de Contagem)

A prima de Breno* comemorava a instalação de uma televisão a cabo gospel em sua casa. Era o fim da dependência midiática àquela emissora cuja qualidade da programação há muito deixou de acompanhar sua popularidade. Ele também viu nisso motivo para comemoração e não perdeu a chance de fazer a proposta: “Vamos compartilhar?”.

Durante uma discussão acalorada, Maiara* aumentou o tom da voz para que todos os colegas de classe pudessem ouvir sua opinião a respeito do consumo de produtos piratas. O professor lançou a questão e ela falou, até com certa dose de orgulho nas palavras: “Eu compro piratas, sim! E, duvido que, com o preço que estão os originais, alguém consiga manter uma coleção de CD’s se não for desse jeito!”.

Gislaine* é médica, profissão sonhada por muitos por ter a fama de remunerar bem. Em tese, não tem do que reclamar. Mas, quando o assunto é imposto, ela reclama, sim. “Eu acho muito dinheiro. Trabalhei ‘um monte’ ano passado, retive na fonte e ainda tive que pagar R$ 8 mil que faltaram!”. Sobre a pirataria, a questão financeira, novamente, ganha foco: “É ambivalente mesmo e eu fico me culpando. Tento evitar, mas, se eu não comprar pirata, eu não vou comprar o original, porque não tenho o dinheiro”, argumenta.

Ândrea* diz que nada compensa o preço baixo dos produtos piratas, porque danificam os aparelhos e, é lógico, não têm a qualidade de um produto original. “Já comprei, mas, hoje em dia, prefiro não comprar mais”.

Bárbara* conhece a lei. Sabe que comprar mercadorias não-originais é crime e demonstra receio em admitir. Entretanto… “Sim, eu compro. Mas sei que é errado”.

O leitor que chegou até aqui deve estar com um pé atrás com o título da reportagem. Até porque pequena é a probabilidade de você estar numa praia paradisíaca, lendo essa notícia no seu notebook ou tablet para relaxar, depois de aplicar o seu mais recente golpe milionário. Mas, pode acreditar, não é nada pessoal. Qualquer um de nós está sujeito a ser corrupto em pequenos e corriqueiros hábitos do dia a dia. No contexto, a compra de produtos piratas, a sonegação de impostos e a ligação clandestina de energia elétrica, de sinal a cabo e de Internet são somente a ponta do iceberg. Tem, também, a cola na prova, o troco a mais não devolvido, o atestado “frio” no serviço e até a manobra para furar a fila e chegar mais rápido ao atendimento. A lista só aumenta. Infelizmente, a frequência com que tais comportamentos são praticados é tão grande que esses e outros atos corruptos viraram rotina. E, o pior: uma rotina aceitável na qual o adjetivo “corrupto” soa até como exagero. No momento em que o país inteiro se revolta contra a má administração do governo e os episódios de corrupção que dominam a máquina pública, é válida a reflexão sobre a parte que cada cidadão deve desempenhar. Apesar dos preços altos e do superfaturamento que favorece os setores público e privado, é justificável pagar na mesma moeda?

Na opinião do pastor do Ministério Casa de Oração (MCO) e coronel da reserva do Exército Brasileiro, Sergio Ribeiro Guimarães, a postura não é generalizada. Mas, muitas das pessoas que reclamam da desonestidade dos políticos, também agem de forma desonesta. “Na verdade, elas estão reclamando, porque não tiveram a oportunidade de fazer o mesmo que esses políticos estão fazendo. Acredito, também, que existam muitas pessoas honestas indignadas com a bandalheira dos nossos políticos e que esperam uma mudança na mentalidade que tem norteado muitos brasileiros para levar vantagem em tudo”, comentou.

“Não existe pequena corrupção ou grande corrupção. O que existe é a oportunidade de cometê-la no meio que estamos inseridos. Estes grandes corruptores quando estavam em outras camadas sociais já praticavam suas corrupções, assim como creio que esses que cometem as pequenas, se chegarem lá no alto poder virão a cometer as grandes, também”.

A psicóloga Marilei Vaz partilha da mesma opinião e diz acreditar, inclusive, que até os asteriscos que acompanham o nome das personagens no início desta reportagem (colocados a pedido dos entrevistados para proteger sua real identidade), podem ser encaixados no que, na psicanálise, chama-se “mecanismos de defesa”: “Embora essas atitudes desonestas tenham respaldo social, as pessoas tendem a querer camuflá-las e usar de mecanismos para suportar a dificuldade de aceitar os próprios erros”, explicou. “Na verdade, não importa se são pequenas coisas ou não. Quem é honesto, é honesto. O ideal seria que a sociedade parasse de resolver tudo na mentira e voltasse à transparência”.

Um jeitinho ali, outro acolá
Soando ou não como falso moralismo, o debate é extenso e provoca posicionamentos diversos. O músico e publicitário, André Chiesa, por exemplo, concorda que práticas como a sonegação de impostos e a pirataria sejam erradas. Porém, faz ressalvas. “Tenho dois lados. Acho importante ser visto que, assim como não é certo consumir um produto que não é original, uma pessoa que vende esse tipo de produto trabalha igualmente, como qualquer outro comerciante. Até onde estamos errados?”, questiona. “Sabemos que as marcas originais superfaturam seus valores simplesmente pelo logo impresso ao mesmo tempo em que escravizam chineses, indianos e tantos outros em suas fábricas terceirizadas”.

Integrante da banda Pimenta Buena, Chiesa diz, inclusive, que não se sente lesado com as cópias que volta e meia surgem do DVD e dos dois CD’s já lançados pelo grupo. “Acho que ajuda muito a divulgar. Em um mercado onde quem menos ganha é quem cria tudo, para nós só ajudou”, disse.

Punição ou conscientização?
Em maio desse ano, o Ministério da Justiça lançou o 3º Plano Nacional de Combate à Pirataria, elaborado pelo Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos Contra a Propriedade Intelectual (CNCP). A ideia é trabalhar ações de conscientização tanto junto aos consumidores quanto aos próprios órgãos públicos, além de apoiar iniciativas empresariais voltadas à formalização da economia, inclusão social, apoio à gestão da inovação e ao empreendedorismo. Aumentar o enfrentamento da pirataria por meio de ações repressivas ou de fiscalização também está no projeto.

Companhia faz fiscalização e campanhas de alerta à população (Foto: CEEE)
Companhia faz fiscalização e campanhas de alerta à população (Foto: CEEE)

Sob o mote “Se alguém está utilizando energia de graça, os outros estão pagando por isso!”, a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) possui até formulário online para quem quiser contribuir denunciando irregularidades. E não apenas pelo prejuízo financeiro, mas, para evitar casos como o ocorrido em dezembro de 2011, quando um homem morreu eletrocutado, próximo à Estação Rodoviária de Pelotas, ao tentar puxar energia elétrica para sua casa de um poste da CEEE.

Quando o assunto é a clandestinidade no sinal de TV a cabo, também se fala em providências. Conforme dados divulgados pela Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), num período de dez anos, sem um combate eficiente, a pirataria no setor pode eliminar 150 mil postos de trabalho legais e qualificados, sonegar mais de R$ 500 milhões ao Tesouro Nacional, desviar R$ 10 bilhões em investimentos e atrasar programas de inclusão digital. Embora socialmente tolerados, os praticantes dessa infração são enquadrados, há dois anos, como usuários ilegais de telecomunicações, pela Lei Geral das Telecomunicações. Isso vale tanto para quem concede como para quem utiliza o sinal clandestino.

Quem pratica sonegação fiscal, omitindo informações na Declaração do Imposto de Renda para diminuir a contribuição, por exemplo, está sujeito a pena de reclusão e a multa, de acordo com a legislação federal.

Mas, e quando os pequenos delitos não são considerados crimes formalmente falando? A funcionária pública Luiza Soares, considera que, mesmo assim, vale a auto-vigilância. “São coisas muito sérias. Se não vigiarmos, nas pequenas coisas podemos estar concordando com o que eles [os corruptos] estão fazendo”. Ao que Sergio Guimarães completa: “Cabe a cada um de nós fazer a nossa parte dentro da sociedade e orarmos para que essa mudança ocorra ainda em nossos dias”. Agora, a responsabilidade fica na consciência de cada um.

Taís Brem
*Texto publicado originalmente em agosto de 2013 no site de notícias Reportchê.

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Cala-te, boca!

Evoluindo de xingamento a elogio, palavrões estão na boca do povo, mas ainda são mal vistos

Foto: Divulgação
Popularidade não aliviou má fama dos “nomes feios” (Foto: Divulgação)

Se antes era senha para um bom tapa na boca, hoje já não é tão feio assim. Falar palavrão está na moda. E nessa moda, nomes que acumularam má fama ao longo da história já não são utilizados apenas para descarregar a língua em xingamentos. Eles viraram sinônimo de adjetivos comuns, usados no dia a dia. E estão mais populares do que a gente costuma perceber.

Exemplos? Dizer que você foi a uma p*t* festa, significa que sua saída do fim de semana foi, a nada menos, que a um baita evento. Falar que aquele autor que você adora escreve bem pra c*r*lho, é elogiá-lo por sua capacidade ímpar de colocar as palavras no papel. E o tal do “ligue o f*d*-se” não passa de um conselho para levar a vida de forma mais light e desencanada. A maior prova de que isso não é balela, é que grandes são as chances de você ter lido essas expressões em seu sentido completo, como se os asteriscos não existissem.

Mãe de dois filhos – um de 17 e um de 20 –, a funcionária pública Mariza Cruz, 35, diz acreditar que esse “vocabulário pop” tem a ver com a inversão de valores da sociedade moderna. “Tudo o que circula na mídia, se torna ‘moda’”, disse. “As músicas, entre outros meios, estimulam o uso desse tipo de palavras, assim como o uso de drogas e outras coisas mais graves. Espero que meus filhos não se contaminem, mas não é fácil. Às vezes, ouço conversas dos meus primos, por exemplo, que têm entre 14 e 18 anos, e é assustador”.

Bruna Soares (Foto: Arquivo Pessoal)
Bruna costuma policiar o hábito (Foto: Arquivo Pessoal)

Pelo discurso, é possível que Mariza também ficasse incomodada se ouvisse uma conversa da vestibulanda Bruna Soares, 19, com sua turma. Bruna diz achar normal falar palavrão. “Mas, depende com quem, porque tem uns que eu acho meio pesados para se falar e, de vez em quando, dependendo do ambiente ou das pessoas que estão comigo, eu cuido pra não falar”, ponderou. Os pais de Bruna – o publicitário Paulo e a bancária Marta – estão entre as pessoas que ela considera inadequadas para ouvirem seu palavreado liberal, embora não lembre de ter recebido nenhuma correção deles nesse sentido. “Não lembro de me corrigirem, mas, também, não fico me cuidando. É normal não falar para eles”.

O analista e desenvolvedor de sistemas Robson Hellebrandt, 24, assume, numa boa, que fala palavrão em seu dia a dia, entretanto, como Bruna, ele também estipula restrições. “Não uso para ofender ninguém. Geralmente, é para intensificar alguma novidade, um fato que me emociona ou conquista. Muitas vezes, nos meus encontros com amigos, usamos bastante essa linguagem, mas sempre no intuito de intensificar a emoção do momento. Faz parte, infelizmente”, disse. Ao ser questionado sobre o porquê da palavra “infelizmente” para justificar seu hábito, Hellebrandt explicou: “Acho que posso parecer pouco confiável por, às vezes, me valer de palavrões para expressar algo. Considero que seja uma forma um pouco ‘suja’ de se expressar, que não passa credibilidade”.

"O que é ofensa para uns, não é para outros", disse Daniela (Foto: Taís Brem)
“O que é ofensa para uns, não é para outros”, disse Daniela (Foto: Taís Brem)

Embora tenham adquirido uma aparência mais natural ao longo dos anos, os chamados “nomes feios” não conseguiram, ainda, se desfazer completamente de seu lado negativo. Porém, é provável que esse quadro esteja mudando. “O que é uma ofensa para alguns, em certo contexto, para outros, em outro contexto, é algo natural. Isso acontece, porque a palavra não possui um significado fixo; ela toma diferentes significados, por meio do uso que os falantes fazem dela”, explicou a jornalista e mestra em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (PPGL/UCPel), Daniela Agendes, 25. “É uma questão sócio-cultural. Talvez, seja uma forma de os falantes se integrarem e se identificarem a um determinado grupo, através do uso que fazem da língua, como se o uso do palavrão de forma diferenciada fosse um requisito para fazer parte daquele grupo”.

Punição a R$ 1
Quem não admite essa mudança sócio-cultural e não quer entrar na onda, deve se policiar. E policiar, também, aos seus. Na casa do fotógrafo Nauro Júnior e da jornalista Gabriela Mazza, esse policiamento teve de partir para o lado punitivo. E pasmem: quem controla a punição, não é o pai, mas a filha do casal, a pequena Sofia, de oito anos. “A coisa surgiu meio que naturalmente. Eu sempre falei muito palavrão, faz parte de meu vocabulário. Meus pais já me cobravam muito em casa e, quando a Sofia, nasceu a Gabi pediu para eu dar uma maneirada. Quando ela começou a falar, lá pelos dois anos, notamos que, às vezes, ela repetia alguns palavrões”, contou Nauro. A tática de dizer a Sofia que “falar palavrão é feio”, por si só, não funcionou. Afinal, ela argumentava que “se o papai podia falar, ela também podia”. “Foi quando a Gabi disse que, a cada palavrão que o papai falasse, teria que pagar um real pra ela. Ela adorou e, além de não dizer palavrão, fica me controlando o tempo todo. Até nas minhas palestras, quando ela vai junto, fica anotando quantos palavrões eu falo e depois me cobra. Se eu estiver conversando com alguém, não interessa quem for, e falar algum palavrão, ela começa a anotar pra me cobrar. Aí, eu tenho que explicar para a pessoa sobre a brincadeira, então prefiro me cuidar e falar menos”, afirmou o fotógrafo.

Se o objetivo era mesmo melhorar a qualidade do vocabulário na família, pelo jeito, está funcionando. “Além de ser cobrado o tempo todo em público, ainda tenho prejuízos. Geralmente, tenho que negociar com ela, porque falo muito mais palavrões do que posso pagar. Ela tem três cofrinhos cheios e, agora, fomos para a Bahia e ela conseguiu até comprar lembrancinhas com o meu dinheiro”. Na verdade, dinheiro dela, honestamente adquirido com seu dedicado trabalho de fiscalização.


Taís Brem