O lado bom das filas

 

 

Li ontem este texto de Mário Quintana e achei por bem reproduzi-lo. Muito interessante. Fala sobre filas. Sim, aqueles famosos processos pelos quais, volta-e-meia, passamos pelos motivos mais variados possíveis. Tem fila para pagar as compras no caixa do super, fila para ser atendido no postinho médico, fila para se matricular na escola, fila para receber um órgão a ser transplantado, fila para, enfim, ganhar o tão suado salário no fim do mês e por aí vai. Coisas criadas para facilitar a vida de todo mundo, um progresso na civilização. Mas, o que mais vemos, na verdade, é que este todo mundo – eu, inclusive –, vive a reclamar das ditas-cujas. Todavia, se não fossem elas, imagina a bagunça! Melhor seguir o conselho de Quintana e aproveitar este tempo “livre” para um “útil lazer”. Veja as filas pelo seu lado bom.

 

 

As benditas filas

 

O homenzinho que estava à minha frente na fila do sabão de coco dobrou o jornal, voltou-se para mim e disse:

 

– Não sei por que os jornais falam tanto contra as filas. A fila não é um problema, a fila é uma solução. Lembro-me de que nos meus tempos de ginásio, quando as entradas para as matinês custavam trezentos réis, era aquela luta ombro a ombro nos guichês do Apolo! Venciam os guris mais fortes, os grandalhões, os “prevalecidos”, como a gente dizia. Era o domínio da força bruta, o fascismo, meu caro senhor! Veja agora que beleza, olhe só esta fila: não é o grandalhão, socialmente falando, que chega primeiro ao balcão; é o que tem direito a isso, conforme o seu lugar na fila. Olhe, eu sou um barnabé, pois lá atrás está a cunhada do chefe, que até me cumprimentou, mas “conhece o seu lugar”, compreende? Que é isso? Legalidade, ordem, democracia. Democracia, meu caro senhor. Não, a fila não é um problema, a fila é o orgulho da nossa civilização.

 

Como eu não dissesse nada, o homenzinho prosseguiu:

– E depois, não é só isso. Se não fossem as filas, como poderíamos calmamente ler os jornais do dia, nos inteirarmos dos problemas nacionais e internacionais, e refletir ponderadamente sobre as suas soluções? A fila é propícia à meditação e ao estudo. Ao estudo, sim. Disse isso porque um tio meu, que tem fama de gira, aprendeu grego durante a fila do leite. Está vendo? Se todos fizessem como ele, poderiam, trazendo um livro para a fila, aprofundar seus conhecimentos, cultivar seu espírito, em vez de estar a bradar contra o Sistema que lhe proporciona esse úteis lazeres.

 

QUINTANA, Mário. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p.708. 

   

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