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“A discriminação como regra e a igualdade como exceção”

Tese sobre falta de educadores negros em Pelotas discute desigualdade racial

Pesquisa comprova falta de docentes negros na cidade (Foto: Divulgação)
Pesquisa comprova falta de docentes negros na cidade (Foto: Divulgação)

“Uma análise sobre o discurso da desracialização da docência negra em Instituições de Ensino da Cidade de Pelotas-RS”. Esse é o título da pesquisa realizada pela doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (PPGL/UCPel) Olga Maria Lima Pereira. Nessa entrevista ao Blog Quemany, Olga explica como sua pesquisa pode ajudar a trazer à tona reflexões sobre a situação dos negros no contexto educacional pelotense, não apenas como professores, mas, também, como alunos.

Blog Quemany – Do que trata o seu trabalho, especificamente?
Olga Maria Pereira – O projeto nasceu de uma certa inquietude e de uma busca constante por desconstruir certas histórias que, de tão sedimentadas, tendem a construir, em relação aos negros e seus descendentes, uma única e distorcida história. Por isso, quando escolhi, como tema principal da pesquisa, refletir sobre o discurso da desracialização da docência negra em algumas instituições de ensino da cidade de Pelotas, o fiz por compreender que o mito da democracia e harmonia racial entre negros e brancos, tão aclamado em nosso país, representa apenas uma forma confortável de negação do negro como cidadão de fato e de direito. Por mais que seja angustiante constatar certas verdades que permeiam as relações raciais na cidade de Pelotas, não podemos entrar no conformismo do velho ditado que sempre nos diz que “as coisas sempre foram assim”, que “até têm negros que são encontrados em alguns cargos de chefia, direção etc” e que “em nossas escolas (como não?) há professores negros, sim, senhor!”. No entanto, sabemos que a realidade que nos é apresentada no cotidiano é muito diferente das sutis afirmações de confraternidade e oportunidade entre negros e brancos. Como negar que em nossas instituições de ensino a ausência de docentes negros é um fato e não uma utopia? Como fingir que em nossas escolas o contingente de alunos e professores brancos ,de forma desproporcional, anula a pequena parcela de alunos e docentes negros ? Como desconsiderar a realidade socioeconômica dos negros em nossa cidade e continuar negando um racismo e uma discriminação velada, porém, facilmente identificada? A ausência e a invisibilidade de negros em nossas escolas são realidades escancaradas e jogadas a zonas de total silenciamento. Temos pouquíssimos professores negros em nossa cidade. E daí? Muitas vezes foi isso que ouvi! E o mais grave, na minha opinião, é que essa realidade tenha se naturalizado de tal forma que a impressão que se tem é que ninguém, ou poucos, procuram questionar os porquês dessas ausências justamente nos locais onde a educação e a reflexão deveriam ser sinônimos! Refletir sobre isso é mais do que um dever como pesquisadora: é uma atitude racional e humanizada. A sociedade precisa compreender que as sequelas deixadas em nossos irmãos africanos não podem mais ficar condenadas a uma fala distante, desprovida de atitudes transformadoras.

BQ – Como surgiu a ideia de abordar essa temática?
Olga – Desde minha adolescência, sempre participei de concursos literários sobre a abolição da escravatura realizados na cidade de Pelotas. Por isso, posso dizer que minha pesquisa começou antes mesmo que eu pudesse compreender que um dia ela se tornaria um instrumento reflexivo e de repúdio ao preconceito racial, tema tão caro e tão carente de políticas, verdadeiramente, reparatórias. Aliás, nunca consegui compreender porque o branco precisou anular tanto o negro para fazer sobressair sua vazia vaidade e soberania. Nas escolas, infelizmente, o que aprendemos foi a história do colonizador e, jamais, a história do colonizado – ou escravo, como queiram. Ensinaram-nos que um dia o país precisou ter escravos para escancarar seu desenvolvimento, porém, não nos fizeram refletir que esses escravos tinham uma cor e que essa cor serviu para justificar a desumanidade, fruto de um comércio farto de africanos sequestrados da África e jogados em solo brasileiro. O pigmento de uma pele foi a justificativa mais frágil que o branco arranjou para transformar o negro em escravo e rotulá-lo de ser desprovido de alma e de intelectualidade. No livro de Franz Fanon, “Pele negra, máscaras brancas”, o autor sintetiza essa realidade vivenciada por todos os negros: “Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é minha cor. Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal”. Essas inquietações foram me acompanhando e fortalecendo dentro de mim a incessante busca por tudo aquilo que me negaram tanto nas escolas como na própria academia: a verdadeira aprendizagem reflexiva sobre a outra história tão ausente nos livros didáticos e nos currículos escolares. Por isso, pensei: “Por que não aprofundar a pesquisa sobre essa ausência de alunos negros em nossos cursos de tecnologias? Por que não usar o mestrado como ferramenta reflexiva para me auxiliar a compreender como, de fato, se deu a trajetória desses alunos desde o seu ingresso até a colação de grau?

Poucos alunos negros chegaram à formatura (Foto: Taís Brem)
Poucos alunos negros chegaram à formatura (Foto: Taís Brem)

BQ – Como foi realizada essa pesquisa?
Olga – Fiz um recorte, de 2000 a 2008, de todos os alunos negros dos cursos de tecnologias do Campus Pelotas do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IF-SUL), traçando estatísticas sobre desistência, trancamento, reprovação, cancelamento e colação de grau. Nesses oito anos analisados, fiquei decepcionada e indignada ao perceber que o direito de todos à educação sinaliza apenas uma frase bonita que não condiz com a prática e o quanto a educação continua sendo traduzida pela cor e pela negação do outro que tornei diferente. Apenas oito alunos negros chegaram à colação de grau. Os demais ficaram dispersos nas estatísticas de reprovação, desistência, trancamento e cancelamento de matrículas por motivos de trabalho. Seria por que a intelectualidade é só dos brancos? Ou seria porque a maioria dos alunos negros precisavam dividir a escola com a família e o trabalho? Muitos diziam para mim (afinal, trabalhei por 28 anos no Departamento de Registros Escolares da instituição): “Gostaria muito de continuar o curso, ele é tudo de bom! Chego a me ver como um grande e notável profissional” ou “Seria legal ter um diploma e trabalhar numa grande empresa, mas tenho família e preciso levar o sustento pra casa. Chego tarde da escola e cedo tenho que ir trabalhar. Meu cansaço é tanto, que não estou conseguindo acompanhar as lições do curso”. Ouvindo certos depoimentos ficava me questionando por que temos que conviver com sutilezas de determinadas leis que, desde a escravidão, tendem a legalizar amparos desamparando os negros e seus descendentes. Essas reflexões foram se agigantando dentro de mim e foi aí que resolvi usar o doutorado para pesquisar sobre a significativa ausência de docentes negros nos espaços escolares.

BQ – Mesmo não sendo negra, de que forma você percebe o preconceito racial na área da docência em Pelotas?
Olga – O fato de eu não ser negra, de certa forma, me faz perceber melhor o quanto é significante esse preconceito. Aprofundando um pouquinho mais nossos olhares sobre o preconceito racial numa cidade cujas marcas da escravidão são identificadas pelo período charqueadense, podemos entender, ainda que nos custe, o quanto o negro foi abandonado às margens de periferias e bairros e o quanto o acesso à educação sempre foi privilégio de poucos e não direitos de todos, como rege a Constituição Federal. A ausência de alunos negros nas redes de ensino de Pelotas é o reflexo e a consequência de suas ausências como docentes nesses mesmos espaços que serviram para excluí-los.

Olga estuda na UCPel e trabalha no IF-Sul (Foto: Arquivo Pessoal)
Olga estuda na UCPel e trabalha no IF-Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

BQ – Como sua pesquisa poderá contribuir para a comunidade pelotense na educação e na cultura?
Olga – Em primeiro lugar, como bem sinalizado pela escritora nigeriana Chimamanda Adchie, é importante que não tenhamos sobre os outros a versão de uma única história. Lamentavelmente, somos cônscios que os ensinamentos repassados tanto na escola como na academia sobre o negro e sua contribuição cultural ficaram à mercê de zonas de total silenciamento. Diria mais: o que desaprendemos sobre o negro foi tão forte que preexiste uma falsa concepção sobre sua cor que através dos séculos fragilizou e fragmentou sua identidade. O negro não se enxerga na história como ator portador de uma voz que o identifique. Ele foi e continua abandonado e relegado a povo sem memória. Meu propósito é instigar reflexões sobre temas tão caros que foram silenciados pela ganância e pelo poder desmedido. Ainda que a pesquisa seja apenas um grão de areia num imenso deserto chamado “consciência humana”, creio que, como um todo, ela trará interrogações a serem debatidas e aprofundadas sobre os diversos porquês que insistem em delimitar oportunidades tão estreitas ao exercício da docência negra em Pelotas. Espero, acima de tudo, que ao ingressarmos nesses espaços escolares, nossa sensibilidade aflore a indignação e, através desse desconforto, possamos refletir sobre o papel dessas instituições que naturalizando a ausência dos negros em suas cadeiras fortalecem sua cumplicidade e passividade discriminatória e racista. Se a educação tem como objetivo principal um olhar de acolhimento coletivo, onde estão nossos alunos e professores negros? Até quando os avanços das tecnologias serão maiores que as relações com o outro? Será que é tão difícil compreender que somos todos diferentes, independente do pigmento de uma pele, e isso jamais pode se transformar em motivo torpe capaz de magoar, ignorar e negar ao outro os direitos que dizem ser de todos? Até quando o negro precisará recorrer a todo tipo de lei que os ampare se, desde do período pré-abolição, nenhuma lei foi cumprida em sua integralidade? Como conceber que diante de uma imensa legislação o negro continue sendo discriminado pela cor e, também, por recorrer a tais amparos? Nossa cidade historicamente foi marcada pelo longo período charqueadense, onde o negro foi explorado e humilhado em troca de uma desumana jornada trabalho. No entanto, os casarões dos grandes charqueadores da época hoje servem de pontos turísticos que, ao ressaltar a preciosidade de nossa arquitetura, de forma adversa, silenciam as dores de centenas de negros que deram seu sangue em troca de uma vida miserável. Não temos como quantificar o sofrimento desses negros porque, na história, eles foram transformados em peças,mulas e coisificações múltiplas. A luta por uma igualdade de direitos continua maculando nossa sociedade que , de tantos preconceitos, acaba ratificando a discriminação como regra e a igualdade como exceção.

BQ – Os resultados da pesquisa já estão fechados? O que já pode ser divulgado até esse momento?
Olga – Os resultados ainda não estão fechados, porque utilizei a técnica dos questionários e os mesmos estão chegando a todo o momento. Posso sinalizar que as análises finais não serão capazes de amenizar o preconceito pela cor em nossa cidade que, de forma velada, mas identificada, continua fortalecendo a sensação de um “não-lugar” para negros e negras, sejam eles docentes ou não. A invisibilidade da cor sofrida pelo educador negro continua, tal como num passado não muito distante, a sequelar sua identidade, através de situações constrangedoras vivenciadas no exercício de sua docência. Infelizmente, a mentalidade que simboliza nossa cidade, carrega consigo uma educação fundamentada pela permanência de um branqueamento que ainda persiste em achar que negro numa instituição possa assumir qualquer cargo, menos o de professor. Essa mentalidade, por sua vez, reforça, também, no seu quadro discente um desrespeito por educadores negros. No entanto, tenho percebido que os intelectuais negros estão dispostos a reverter esse quadro lamentável. Esse desconforto está desencadeando uma reação de reversão à imagem depreciativa que sempre lhe impuseram e, isso, em minha opinião, será um grande momento que marcará para sempre a história da educação em nossa cidade.

Taís Brem